Somos preciosos aos olhos de Deus, por esta razão fomos postos como coroamento da obra criadora divina, conforme o relato bíblico da criação. O Salmo 8, na esteira do louvor ao poderio do nome de Deus reconhece a grandeza e a especificidade do ser humano no plano criacional e salvífico de Deus. “Quando vejo o céu, obra dos teus dedos,/ a lua e as estrelas que fixaste,/ que é um mortal, para dele te lembrares,/ e um filho de Adão, para que venhas visitá-lo? E o fizeste pouco menos do que um Deus, coroando-o de glória e beleza” (Sl 8,4-6). A questão antropológica está implícita nesse salmo: Quem é esse ser, constituído pouco abaixo de Deus? Que lugar ocupa? Que dignidade possui? Quem somos? Nossa origem? Nosso sentido de viver? A destinação do nosso ser? São perguntas continuamente feitas e refeitas, respostas sempre em construção e abertas a novas formulações. Porque somos inacabados, em processo, plurais, em ‘fazimento’ (fazendo-nos e sendo feitos), somos travessia, contínuo vir a ser. 6g2p6x
Somos complexos e paradoxais, abertura ao diálogo na busca pelo outro e, simultaneamente, monólogo estéril; somos diafania e nebulosidade, magnitude e vileza, joio e trigo, “manancial de amor e gotejo de ódio”, transparência e opacidade, vitalistas e niilistas, esperançosos e resignados, solidários e egocêntricos, soerguimento e aniquilamento, inocência e malícia, justos e injustos, gratos e ingratos. Exprimimos, às vezes, o que há de mais sublime na condição humana e, noutras, o que há mais hediondo e desprezível. Apesar dessa ambiguidade que nos constitui, somos projeto, identidade peregrina. E, como projeto, somos chamados “a superar as ambiguidades, a escolher rumo construtivo, a definir a identidade pessoal, a autoprogramar-se e a optar pelas causas humanas substanciais” (ARDUINI, 2006, p. 22)
Mesmo como feixe de contrastes, temos a possibilidade de vencer nossos compartimentos estanques e contradições, porque somos constitutivamente abertura. Trazemos em nossa identidade a terra e o céu. Sentimo-nos inclinados à decisão pelo nosso melhor e pelo bem dos outros. Não fomos plasmados para o enclausuramento ou para a autodestruição, mas para a relação e realização, para o sonho e a imaginação, para o amor e a felicidade. Embora circunstancialmente nos tornemos herméticos, são a busca, a inquietação e a capacidade de transcender que nos constituem. Por tal capacidade, ultraamos normas, regras, barreiras, limites, regimes, ideologias, situações e momentos. Vivemos a superar nossas contradições, em busca da reconciliação com todas as coisas. Com agudez, o Concílio Vaticano II explicitou nossa situação: “Todo homem, entretanto, permanece para si mesmo um problema insolúvel, obscuramente percebido. Em algumas ocasiões, com efeito, sobretudo nos mais importantes acontecimentos da vida, ninguém consegue fugir de todo a esta pergunta. Só Deus dá uma resposta plena e totalmente certa a esta questão e chama o homem a mais alto conhecimento e a pesquisa mais humilde” (GS 21).
Na tarefa de superação das nossas ambivalências, a antropologia cristã oferece luminosidade ao projeto existencial humano ao afirmar que em Jesus de Nazaré essa esperança se mostrou realizável: “Na realidade o mistério do homem só se torna claro verdadeiramente no mistério do Verbo encarnado. Com efeito, Adão o primeiro homem era figura daquele que haveria de vir, isto é, de Cristo Senhor. Novo Adão, na mesma revelação do mistério do Pai e de seu amor, Cristo manifesta plenamente o homem ao próprio homem e lhe descobre sua altíssima vocação. Não é, portanto, de se irar que em Cristo estas verdades encontrem sua fonte e atinjam seu ápice” (GS 22). Em Jesus o homem encontra sua ancoragem, seu destino e o que ele é vocacionado a ser, o total esvaziamento e oferecimento de si, a completa transparência e realização, a plena comunhão com seu criador. Por essa razão, o teólogo Karl Rahner considerou a cristologia o início e o fim da antropologia.
Jesus de Nazaré é a inspiração e o protótipo do ser humano. Nele realizou o que ser humano anseia, a reconciliação em todos os âmbitos relacionais: com Deus, com o mundo, com o outro e consigo mesmo. Em Jesus está o que Deus espera do ser humano. Tertuliano, exprimindo a estreita relação entre a criação divina e o mistério da encarnação formulou: “Naquilo que se exprimia no barro, era pensado o Cristo que devia fazer-se homem”. Ele realizou plenamente, em sua existência, os polos relacionais constitutivos de uma pessoa integrada: na relação com Deus, revelou o que é ser filho na fidelidade e na obediência (Hb 5,8), contrapondo-se à Adão, imagem do desobediente, e convidou o homem à filialidade com seu criador (Lc 15,11-32); na relação com os outros, revelou a fraternidade e interpelou o ser humano ao comprometimento com o próximo (Lc 10,25-28); na relação com o mundo, desvelou responsabilidade e compromisso com os mais fracos (Lc 10,29-37), além de exortar a todos à prática da justiça “Buscai, em primeiro lugar, seu Reino e sua justiça, e todas essas coisas vos serão acrescentadas” (Mt 6,33); na relação com o reino, colocou-se em total disponibilidade para realizar a vontade de Deus (Mt 6,25-34) e pediu desprendimento a quem quisesse segui-lo (Mt 19,16-26); e na relação consigo, buscou a total transparência e autenticidade de seu ser e exigiu do ser humano santidade “Portanto, sede perfeitos como vosso Pai celeste é perfeito” (Mt 5,48).